É com tristeza que nós, cidadãos, constatamos estar a escola em crise: ela não consegue desempenhar com eficácia a função de informar e, muito menos, a função formadora. Inúmeras tentativas já foram feitas no intuito de superar esta crise e melhorar a qualidade do ensino. Para tanto, os objetivos foram redefinidos,conteúdos mais atualizados foram acrescidos ao currículo, enquanto o antigo acervo de técnicas didáticas foi revisto, com novas estratégias de ação sendo sucessivamente implantadas. Mas isto não resolveu o problema.
Embora o esforço não tenha sido em vão, temos de reconhecer que não apresentou os resultados esperados, porquanto a crise revelou-se muito mais profunda do que de início aparentava, não se resumindo em simples questão de reformulação de objetivos, conteúdos ou estratégias. O que estava em crise eram os valores, e a escola, sendo uma instituição social, refletia a crise de valores que atingia a sociedade.
O processo educativo sempre se encarregou de difundir os valores sobre os quais se estruturava a sociedade em que estava inserido: assim sendo, na Grécia de Péricles, o ideal era a formação do cidadão consciente e participante da administração de sua cidade estado, na Roma dos Césares, almejava-se formar o político loquaz e o bravo guerreiro, durante a Idade Média, a meta era a formação do homem moralmente íntegro e do Cristão temente a Deus; por ocasião da revolução comercial e, posteriormente, industrial, nas sociedades que sofreram de forma mais aguda e intensa o impacto dessa fase, propunha-se formar o burguês dotado de iniciativa e senso comercial. E assim foi ao longo dos séculos: cada sociedade e cada época histórica, de acordo com os valores sobre os quais se alicerçava, tinham um ideal de homem a ser formado. E a escola, agência dessa sociedade, se encarregava de cumprir esse ideal.
Mas, e agora, em pleno fim de século XX, que ideal de homem nossa escola pretende formar? Esta é a questão fundamental, para a qual precisamos encontrar uma resposta, pois, de outra forma, será infrutífera toda reforma educacional. Enquanto não se souber que tipo de ser humano precisa ser formado, qualquer tentativa de reformular a escola, seja definindo objetivos e programando conteúdos, seja criando novas técnicas , será em vão, pois o que está sendo questionado não é como educar, mas o para que educar. Em outras palavras, o que esta em jogo é o próprio sentido da educação. E, por estar a educação destituída de sentido, apareceu como medidas paliativas e ilusórias os famosos modismos educacionais: um dia introduz-se uma nova técnica didática: noutro dia, a moda já é um novo conteúdo, cuja introdução no currículo, alegasse, será a salvação do ensino. E assim, pulando de modismos em modismos, o professor e o aluno vão tentando cumprir suas tarefas, tendo, no entanto, ambos perdido de vista o sentido de seu objetivo: entra mecanicamente numa sala de aula, sem saber por que nem para que esta desempenhando tal papel.
Usando a moderna terminologia da cibernética, que é o novo modismo em matéria de educação, diríamos que a escola precisa definir qual será o output do sistema. Isto, no entanto, não é tarefa fácil, porque a própria sociedade não apresenta, claramente definido, o seu protótipo de homem.
E porque a sociedade não quer determinar explicitamente este protótipo? Porque há um choque entre valores proclamados e os valores reais. A sociedade em que vivemos se arvora na grande defensora dos valores humanísticos, que, desde os primórdios da cultura helênica, caracterizavam a civilização ocidental. Humanísticos, porque pregam o respeito e a valorização do ser humano como individualidade e como o fim em si mesmo. Baseiam-se na crença de que o homem é um ser perfectível, capaz de ser modificado e se modificar; um ser cultural que, partindo da natureza, transcende e cria o universo da cultura, um ser histórico, capaz de invenção e progresso.
Portanto, tendo isto como pressuposto, o humanismo se valoriza pela caracterização do ser humano como um fim em si mesmo; pelo respeito a individualidade; pela crença na liberdade do homem de poder escolher e agir de forma autônoma; pela crença no auto-aperfeiçoamento, pois um ser que é capaz de invenção e progresso deve estar em constante evolução; e, por fim, para que cada homem possa cumprir seu destino com a dignidade que a condição humana requer, os valores humanísticos pregam a igualdade de oportunidade e solidariedade humana. Em síntese, esta seria a profissão de fé de um humanista.
Não obstante, enquanto a sociedade ocidental do século XX se proclama portadora dos valores humanísticos, seus valores reais são bem outros: o progresso material é mais importante que o desenvolvimento dos padrões culturais e espirituais. Em outras palavras, acima do homem está o dinheiro; mais vale ter do que ser. O que significa que o homem é medido, avaliado e julgado pelo que aparenta e pelo que tem, e não pelo que é realmente. Portanto nossa sociedade tenta camuflar seus reais valores atrás do pedestal em que ostenta a bandeira do humanismo. E este choque que gera a crise a que aludimos a cima, pois, num confronto, os dois tipos de valores não podem coexistir. Quando um é conscientemente escolhido e explicitamente adotado, o outro deverá ser automaticamente rejeitado.
É este o choque de valores que atingem nossa escola. Portanto, a tão alardeada crise da educação não é de natureza metodológica, nem financeira. É, antes de tudo, de caráter filosófico. Como toda pedagogia supõe uma filosofia, podemos afirmar que o que esta em crise, no fim do século XX, é a própria Filosofia, isto é, a própria concepção de homem, de mundo de vida.
Se a sociedade como um todo, na situação conflitante em que se encontra, frente a valores tão contraditórios, não souber ou não quiser equacionar o problema, cabe a nós, educadores e educandos, mesmo que individualmente, cada um em sua sala de aula, traçar o rumo a ser atingido. Numa época de tantos valores antagônicos, se a solução não puder ser global, que seja individual. Pois, como pode um educador pretender realizar seu trabalho, se nem se quer sabe o que deseja atingir? Como pode um aluno cursar todo o ensino básico sem ao menos ter um objetivo almejado?
Portanto, antes de entrar em sua sala de aula, caro educador e caro aluno, pense bem nisso: que tipo de sociedade queremos formar? Queremos uma sociedade pesada na balança do ter, que julga a si próprio e os outros pelo prisma da aparência, formando estereótipos rígidos, que vão cristalizar em preconceito? Ou queremos formar uma sociedade sadia, tanto física quanto psicologicamente, que esteja em harmonia consigo e com a natureza, que demonstre consciência dos seus direitos e responsabilidades, dotada de senso crítico e capacidade de auto-analise, tendo em vista o aperfeiçoamento constante e senso de responsabilidade pelos destinos da humanidade? Cada educador e educando carrega nos ombros a responsabilidade desta escolha.
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Texto de: Regina Célia Cazaux Haydt
Em: "Crise na educação: por quê?", Thot, n. 22, p. 45.
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