Como ser um Membro da Sociedade

A infância: componentes não-sociais e sociais

Podemos afirmar que a experiência social começa com o nascimento. O mundo da criança é habitado por outras pessoas. Desde o início, a criança desenvolve uma interação não apenas com o próprio corpo e o ambiente físico, mas também com outros seres humanos.

Os componentes não sociais das experiências da criança estão entremeados e são modificados pela experiência social. Sua experiência relativa aos outros indivíduos constitui o ponto crucial de toda experiência. São os outros que criam os padrões por meio dos quais se realizam as experiências. É só através desses padrões que o organismo consegue estabelecer relações estáveis com o mundo exterior – e não apenas com o mundo social, mas também com o da ambiência física. E esses mesmos padrões penetram no organismo; em outras palavras, interferem em seu funcionamento. São os outros que estabelecem os padrões pelos quais se satisfaz o anseio da criança pelo alimento. E, ao procederem assim, esses outros interferem no próprio organismo da criança. A sociedade não apenas impõe seus padrões de comportamento da criança, mas estende a mão para dentro de seu organismo a fim de regular as funções de seu estômago. O mesmo aplica-se à secreção, ao sono e a outros processos fisiológicos ligados ao estômago.


Alimentar ou não alimentar: uma questão de fixação social

Em suas relações com outros indivíduos, a criança defronta-se com um microcosmo bastante circunscrito. Só bem mais tarde fica sabendo que esse microcosmo se entrosa com um macrocosmo de dimensões infinitamente maiores. Esse macrocosmo (invisível) moldou e definiu antecipadamente todas as experiências com que a criança se defronta com seu microcosmo. Os microcosmos, em que se desenvolvem as experiências da criança se diferem de acordo com os macrocosmos que se inserem.


O treinamento para o uso do toalete: a moita ou a “inspiração”

O treinamento para o uso do toalete constitui outro setor do comportamento da criança em que as próprias funções fisiológicas do organismo são forçadas de maneira bastante óbvia, a submeter-se aos padrões sociais.


A socialização: padrões relativos experimentados como absolutos

O processo por meio do qual o indivíduo aprende a ser um membro da sociedade é designado pelo nome de socialização. É a imposição de padrões sociais à conduta individual. Esses padrões chegam mesmo a interferir nos processos fisiológicos do organismo. Os padrões impostos durante o processo de socialização são altamente relativos. Dependem não apenas das características individuais dos adultos que cuidam da criança, mas também dos vários grupamentos e classes sociais a que pertencem esses adultos.

O caráter absoluto com que os padrões sociais atingem a criança resulta de dois fatos bastante simples: o grande poder que os adultos exercem numa situação como a que se encontra a criança e a ignorância dessa sobre a existência de padrões alternativos. Os adultos exercem um poder avassalador sobre a criança, por vários fatores como: a dependência que as crianças tem deles e que temem seus castigos, os adultos apresentam-lhe certo “mundo” e para a criança, esse “mundo” é o Mundo. Só posteriormente a mesma descobre que existem alternativas fora desse “mundo”, que o “mundo” dos seus pais é relativo no tempo e no espaço e que padrões diferentes podem ser adotados. Só então o indivíduo toma conhecimento da relatividade dos padrões e dos mundos sociais.


A iniciação da criança: o mundo transforma-se em seu mundo

Pela “visão policialesca”, a socialização é vista principalmente como uma série de controles exercidos de fora e apoiada por algum sistema de recompensas e castigos. Por outro ângulo, a socialização pode ser considerada um processo de iniciação por meio do qual a criança pode desenvolver-se e expandir-se a fim de ingressar num mundo que está ao seu alcance. Sob este ponto de vista a socialização constituiu parte essencial do processo de humanização integral e plena realização do potencial do indivíduo. No curso do processo de socialização este mundo torna-se inteligível. A criança penetra nesse mundo e adquire capacidade de participar dele. Ele se transforma no “seu mundo”.


A linguagem, o pensamento, a reflexão e a “fala respondona”

O veículo primordial da socialização, especialmente sob o 2o ponto de vista, é a linguagem. Ao assenhorear-se da linguagem, a criança aprende a transmitir e reter certos significados socialmente reconhecidos. Adquire a capacidade de pensar abstratamente e a capacidade de refletir.

A socialização é um processo de configuração e/ou moldagem. A criança é configurada pela sociedade, é por ela moldada de forma a fazer dela um membro reconhecido e participante. Mas, a criança não é uma vítima passiva da socialização. Resiste à mesma, dela participa e nela colabora de forma variada. A socialização é um processo recíproco, visto que afeta não apenas o indivíduo socializando, mas também os socializantes.

É necessário admitir que há limites para a socialização. Essas limitações estão fixadas no organismo da criança. O estado atual do conhecimento científico não nos permite traçar limites precisos da socialização. Todavia, é muito importante que não nos esqueçamos de que esse limite existe.


Tomando as atitudes e desempenhando o papel dos outros

O mecanismo fundamental da socialização consiste num processo de interação e identificação com os outros. Um passo decisivo é dado no momento em que a criança aprende a tomar as atitudes do outro. Isso significa que a criança não só aprende a reconhecer certa atitude em outra pessoa e a compreender seu sentido; mas também aprende a toma-la ela mesma. Há um processo de interação e identificação em que o sentido da atitude é absorvido pela criança.

Em fase específica da socialização terá sido coroada de êxito quando a criança tiver aprendido a tomar a mesma atitude para consigo mesma, até na ausência da mãe. O que a mãe transmite ao filho não é apenas uma série de atitudes, mas sim um padrão geral de conduta que pode ser designado como o “papel da mãe”. A criança aprende não só a tomar atitudes específicas, mas a assumir os respectivos papéis. Ao desempenhar papéis (cowboy, índio, pai, irmão, etc) a criança aprende, antes de mais nada, a seguir um padrão de conduta reiterada. O que importa não é tornar-se um índio, mas aprender como desempenhar um papel.


Socialização: dos “outros significativos” ao “outro generalizado”

Além da função de aprendizagem generalizada realizada através do ato de “desempenhar” papéis, esse mesmo processo pode transmitir significados sociais “verdadeiros”. A maneira pela qual uma criança desempenhará papeis dependerá do modo em que ela vê o papel diante da visão da sociedade ou comunidade em que vive.

Vê-se que a socialização se realiza numa contínua interação com outros. Mas nem todos os outros com que a criança se defronta assumem a mesma importância nesse processo. Alguns deles evidentemente ocupam uma posição de relevo. Outras pessoas se situam num segundo plano, e sua função no processo de socialização poderia ser concebida como a de quem providencia o fundo musical. Entram nesta categoria os contactos ocasionais de todos os tipos, desde o carteiro até o vizinho que só aparece de vez em quando.

Os outros significativos. São as pessoas que com maior freqüência se tornam objeto da interação da criança, com as quais mantém relações emocionais mais intensas e cujas atitudes assumem importância crucial na situação em que se encontra. Não nos referimos apenas às suas características ou excentricidades individuais, mas à posição que ocupam no mundo mais amplo da sociedade. Nas fases iniciais da socialização toda ou qualquer atitude adotada pela criança terá sido copiada dos outros significativos. Num sentido bastante real, eles são o mundo social da criança. Mas, à medida que prossegue a socialização, a criança começa a compreender que essas atitudes e papéis se ligam a uma realidade muito mais ampla. Nessa altura a criança passa a relacionar-se não apenas com determinados outros significativos, mas com um outro generalizado, que representa a sociedade em geral. Depois da descoberta do outro generalizado, as atitudes específicas assumiram caráter universal. Os comandos e as proibições específicas de outros determinados transformaram-se em normas gerais.


Interiorização, consciência e autodescoberta

A interiorização significa que o mundo social, com sua multiplicidade de significados, passa a interiorizar-se na consciência da criança. Através dum complicado processo de reciprocidade e reflexão, certa simetria se estabelece entre o mundo interior do indivíduo e o mundo social externo, em cujo âmbito o mesmo está sendo socializado. A consciência é basicamente a interiorização dos comandos e proibições de ordem moral vindos do exterior.

Seria extremamente dispendioso para a sociedade, e provavelmente até mesmo impossível, se o indivíduo tivesse que ser rodeado constantemente por outros que lhe dissessem “faça isto” ou “não faça aquilo”. Depois que estas induções se interiorizaram na consciência do indivíduo, só ocasionalmente haverá necessidade de reforços vindos de fora. Na sua maioria, os indivíduos se controlam a si mesmos na maior parte das vezes. É só por meio da interiorização das vozes dos outros que podemos falar a nós mesmos. Se ninguém nos tivesse dirigido uma mensagem significativa vinda de fora, em nosso interior também reinaria o silêncio. É só através dos outros que podemos descobrir-nos a nós mesmos. É só através dos outros significativos que podemos desenvolver um relacionamento significativo com a nossa própria pessoa.


“É apenas uma criança” – Crescimento biológico e etapas biográficas

Existe certo paralelismo entre os processos biológicos do crescimento e a socialização. Quando menos, o crescimento do organismo impõe certos limites à socialização. Não há dúvida de que o biólogo pode definir a infância com base no grau de desenvolvimento do organismo; e o psicólogo pode formular uma definição correlacionada com a do biólogo, baseada no desenvolvimento da mente. Dentro desses limites biológicos e psicológicos, porém, o sociólogo há de insistir em que a infância depende de construção social.

A infância, conforme é entendida e conhecida hoje, constitui uma criação do mundo moderno, especialmente da burguesia. Não faz muito tempo que as crianças eram consideradas apenas adultos em miniatura. Quando a infância passou a ser concebida e organizada como uma fase muito especial da vida, distinta da idade adulta, as crianças passaram a usar trajes especiais, diferentes dos usados pelas crianças quando eram tratadas como adultos em miniatura.

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Fonte:
SOCIOLOGIA E SOCIEDADE (Leituras de introdução à Sociologia)
Marialice Mencarini Foracchi – José de Souza Martins
Capítulo 13 - SOCIALIZAÇÃO: COMO SER UM MEMBRO DA SOCIEDADE
Peter L. Berger e Brigitte Berger

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