Desde há mais de um século, o capitalismo encontra-se dilacerado por uma crise cultural profunda, aberta, que podemos resumir numa palavra: o modernismo, ou seja essa nova lógica artística baseada em rupturas e descontinuidades, assentando na negação da tradição, no culto da novidade e da mudança. O código do novo e da atualidade descobre a sua primeira formulação teórica em Baudelaire, para quem o belo é inseparável da modernidade, da moda, do contingente; mas é, sobretudo, entre 1880 e 1930 que o modernismo ganha toda a sua amplitude com o abalar do espaço da representação clássica, com a emergência de uma escrita desprendida das imposições da significação codificada, e depois com as explosões dos grupos e artistas de vanguarda. A partir de então, os artistas não param de destruir as formas e sintaxes instituídas, insurgem-se violentamente contra a ordem oficial e o academismo: ódio à tradição e raiva de renovação total. Sem dúvida, todas as grandes obras artísticas do passado inovaram sempre de uma maneira ou de outra, introduzindo aqui e ali a derrogação dos cânones em vigor, mas é apenas neste fim de século que a mudança se torna revolução, ruptura clara na trama do tempo, descontinuidade entre um antes e um de pois, afirmação de uma ordem resolutamente outra. O modernismo não se contenta com produzir variações estilísticas e temas inéditos, quer romper a continuidade que nos liga ao passado, instituir obras absolutamente novas. Mas o mais notável ainda é que a raiva modernista desqualifica, no mesmo impulso, as obras mais modernas: as obras de vanguarda, logo depois de produzidas, tornam-se retaguarda e afundam-se no déjà-vu; o modernismo proíbe o estacionamento, impõe a invenção perpétua, a fuga para diante, e é essa a "contradição" que lhe é imanente: "A modernidade é uma espécie de auto-destruição criadora.., a arte moderna não é somente filha da idade critica, mas crítica de si própria". Adorno dizia-o de outra maneira: o modernismo define-se menos por declarações e manifestos positivos do que por um processo de negação sem limites e que, por isso, não se poupa a si próprio: a "tradição do novo" (H. Rosenberg), fórmula paradoxal do modernismo, destrói e desvaloriza inelutavelmente aquilo que institui, o novo inclina-se de pronto na direção do antigo, nenhum conteúdo positivo é já afirmado, sendo a própria forma da mudança o único princípio que governa a arte. O inédito tornou-se o imperativo categórico da liberdade artística.
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GILLES LIPOVETSKY
A era do vazio: ensaio sobre o individualismo contemporâneo
Lisboa: Relógio d'Água, 1996. (p. 76-77)
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