Gilles Deleuze & Félix Guatarri
SYLVANO BUSSOTI
Escrevemos o Anti-Edipo a dois. Como
cada um de nós era vários, já era muita gente. Utilizamos tudo o que
nos aproximava, o mais próximo e o mais distante. Distribuímos hábeis
pseudônimos para dissimular. Por que preservamos nossos nomes? Por
hábito, exclusivamente por hábito. Para passarmos despercebidos. Para
tornar imperceptível, não a nós mesmos, mas o que nos faz agir,
experimentar ou pensar. E, finalmente, porque é agradável falar como
todo mundo e dizer o sol nasce, quando todo mundo sabe que essa é
apenas uma maneira de falar. Não chegar ao ponto em que não se diz mais
EU, mas ao ponto em que já não tem qualquer importância dizer ou não
dizer EU. Não somos mais nós mesmos. Cada um reconhecerá os seus. Fomos
ajudados, aspirados, multiplicados.
Um livro não tem objeto nem sujeito; é feito de matérias diferentemente
formadas, de datas e velocidades muito diferentes. Desde que se atribui
um livro a um sujeito, negligencia-se este trabalho das matérias e a
exterioridade de suas correlações. Fabrica-se um bom Deus para
movimentos geológicos. Num livro, como em qualquer coisa, há linhas de
articulação ou segmentaridade, estratos, territorialidades, mas também
linhas de fuga, movimentos de desterritorialização e desestratificação.
As velocidades comparadas de escoamento, conforme estas linhas,
acarretam fenômenos de retardamento relativo, de viscosidade ou, ao
contrário, de precipitação e de ruptura. Tudo isto, as linhas e as
velocidades mensuráveis, constitui um agenciamento. Um livro é um tal
agenciamento e, como tal, inatribuível. É uma multiplicidade — mas não
se sabe ainda o que o múltiplo implica, quando ele deixa de ser
atribuído, quer dizer, quando é elevado ao estado de substantivo. Um
agenciamento maquínico é direcionado para os estratos que fazem dele,
sem dúvida, uma espécie de organismo, ou bem uma totalidade
significante, ou bem uma determinação atribuível a um sujeito, mas ele
não é menos direcionado para um corpo sem órgãos, que não pára de
desfazer o organismo, de fazer passar e circular partículas
a-significantes, intensidades puras, e não pára de atribuir-se os
sujeitos aos quais não deixa senão um nome como rastro de uma
intensidade. Qual é o corpo sem órgãos de um livro? Há vários, segundo
a natureza das linhas consideradas, segundo seu teor ou sua densidade
própria, segundo sua possibilidade de convergência sobre "um plano de
consistência" que lhe assegura a seleção. Aí, como em qualquer lugar, o
essencial são as unidades de medida: "quantificar a escrita". Não há
diferença entre aquilo de que um livro fala e a maneira como é feito.
Um livro tampouco tem objeto. Considerado como agenciamento, ele está
somente em conexão com outros agenciamentos, em relação com outros
corpos sem órgãos. Não se perguntará nunca o que um livro quer dizer,
significado ou significante, não se buscará nada compreender num livro,
perguntar-se-á com o que ele funciona, em conexão com o que ele faz ou
não passar intensidades, em que multiplicidades ele se introduz e
metamorfoseia a sua, com que corpos sem órgãos ele faz convergir o seu.
Um livro existe apenas pelo fora e no fora. Assim, sendo o próprio
livro uma pequena máquina, que relação, por sua vez mensurável, esta
máquina literária entretém com uma máquina de guerra, uma máquina de
amor, uma máquina revolucionária etc. — e com uma máquina abstrata que
as arrasta. Fomos criticados por invocar muito freqüentemente
literatos. Mas a única questão, quando se escreve, é saber com que
outra máquina a máquina literária pode estar ligada, e deve ser ligada,
para funcionar. Kleist e uma louca máquina de guerra, Kafka e uma
máquina burocrática inaudita... (e se nos tornássemos animal ou vegetal
por literatura, o que não quer certamente dizer literariamente? Não
seria primeiramente pela voz que alguém se torna animal?) A literatura
é um agenciamento, ela nada tem a ver com ideologia, e, de resto, não
existe nem nunca existiu ideologia.
Falamos exclusivamente disto: multiplicidade, linhas, estratos e
segmentaridades, linhas de fuga e intensidades, agenciamentos
maquínicos e seus diferentes tipos, os corpos sem órgãos e sua
construção, sua seleção, o plano de consistência, as unidades de medida
em cada caso. Os Estratômetros, os deleômetros, as unidades CsO * de
densidade, as unidades CsO de convergência não formam somente uma
quantificação da escrita, mas a definem como sendo sempre a medida de
outra coisa. Escrever nada tem a ver com significar, mas com
agrimensar, cartografar, mesmo que sejam regiões ainda por vir.
Um
primeiro tipo de livro é o livro-raiz. A árvore já é a imagem do mundo,
ou a raiz é a imagem da árvore-mundo. É o livro clássico, como bela
inferioridade orgânica, significante e subjetiva (os estratos do
livro). O livro imita o mundo, como a arte, a natureza: por
procedimentos que lhes são próprios e que realizam o que a natureza não
pode ou não pode mais fazer. A lei do livro é a da reflexão, o Uno que
se torna dois. Como é que a lei do livro estaria na natureza, posto que
ela preside a própria divisão entre mundo e livro, natureza e arte? Um
torna-se dois: cada vez que encontramos esta fórmula, mesmo que
enunciada estrategicamente por Mao Tsé-Tung, mesmo compreendida o mais
"dialeticamente" possível, encontramo-nos diante do pensamento mais
clássico e o mais refletido, o mais velho, o mais cansado. A natureza
não age assim: as próprias raízes são pivotantes com ramificação mais
numerosa, lateral e circular, não dicotômica. O espírito é mais lento
que a natureza. Até mesmo o livro como realidade natural é pivotante,
com seu eixo e as folhas ao redor. Mas o livro como realidade
espiritual, a Árvore ou a Raiz como imagem, não pára de desenvolver a
lei do Uno que se torna dois, depois dois que se tornam quatro.... A
lógica binária é a realidade espiritual da árvore-raiz. Até uma
disciplina "avançada" como a Lingüística retém como imagem de base esta
árvore-raiz, que a liga à reflexão clássica (assim Chomsky e a árvore
sintagmática, começando num ponto S para proceder por dicotomia). Isto
quer dizer que este pensamento nunca compreendeu a multiplicidade: ele
necessita de uma forte unidade principal, unidade que é suposta para
chegar a duas, segundo um método espiritual. E do lado do objeto,
segundo o método natural, pode-se sem dúvida passar diretamente do Uno
a três, quatro ou cinco, mas sempre com a condição de dispor de uma
forte unidade principal, a do pivô, que suporta as raízes secundárias.
Isto não melhora nada. As relações biunívocas entre círculos sucessivos
apenas substituíram a lógica binária da dicotomia. A raiz pivotante não
compreende a multiplicidade mais do que o conseguido pela raiz
dicotômica. Uma opera no objeto, enquanto a outra opera no sujeito. A
lógica binária e as relações biunívocas dominam ainda a psicanálise (a
árvore do delírio na interpretação freudiana de Schreber), a
lingüística e o estruturalismo, e até a informática.
O sistema-radícula, ou raiz fasciculada, é a segunda figura do livro,
da qual nossa modernidade se vale de bom grado. Desta vez a raiz
principal abortou, ou se destruiu em sua extremidade: vem se enxertar
nela uma multiplicidade imediata e qualquer de raízes secundárias que
deflagram um grande desenvolvimento. Desta vez, a realidade natural
aparece no aborto da raiz principal, mas sua unidade subsiste ainda
como passada ou por vir, como possível. Deve-se perguntar se a
realidade espiritual e refletida não compensa este estado de coisas,
manifestando, por sua vez, a exigência de "ma unidade secreta ainda
mais compreensiva, ou de uma totalidade mais extensiva. Seja o método
do cut-up de Burroughs: a dobragem de um texto sobre outro,
constitutiva de raízes múltiplas e mesmo adventícias (dir-se-ia uma
estaca), implica uma dimensão suplementar à dos textos considerados. É
nesta dimensão suplementar da dobragem que a unidade continua seu
trabalho espiritual. É neste sentido que a obra mais deliberadamente
parcelar pode também ser apresentada como Obra total ou o Grande Opus.
A maior parte dos métodos modernos para fazer proliferar séries ou para
fazer crescer uma multiplicidade valem perfeitamente numa direção, por
exemplo, linear, enquanto que uma unidade de totalização se afirma
tanto mais numa outra dimensão, a de um círculo ou de um ciclo. Toda
vez que uma multiplicidade se encontra presa numa estrutura, seu
crescimento é compensado por uma redução das leis de combinação. Os
abortadores da unidade são aqui fazedores de anjos, doctores angelici,
posto que eles afirmam uma unidade propriamente angélica e superior. As
palavras de Joyce, justamente ditas "com raízes múltiplas", somente
quebram efetivamente a unidade da palavra, ou mesmo da língua, à medida
que põem uma unidade cíclica da frase, do texto ou do saber. Os
aforismos de Nietzsche somente quebram a unidade linear do saber à
medida que remetem à unidade cíclica do eterno retorno, presente como
um não sabido no pensamento. Vale dizer que o sistema fasciculado não
rompe verdadeiramente com o dualismo, com a complementaridade de um
sujeito e de um objeto, de uma realidade natural e de uma realidade
espiritual: a unidade não pára de ser contrariada e impedida no objeto,
enquanto que um novo tipo de unidade triunfa no sujeito. O mundo perdeu
seu pivô, o sujeito não pode nem mesmo mais fazer dicotomia, mas acede
a uma mais alta unidade, de ambivalência ou de sobredeterminação, numa
dimensão sempre suplementar àquela de seu objeto. O mundo tornou-se
caos, mas o livro permanece sendo imagem do mundo, caosmo-radícula, em
vez de cosmo-raiz. Estranha mistificação, esta do livro, que é tanto
mais total quanto mais fragmentada. O livro como imagem do mundo é de
toda maneira uma idéia insípida. Na verdade não basta dizer Viva o
múltiplo, grito de resto difícil de emitir. Nenhuma habilidade
tipográfica, lexical ou mesmo sintática será suficiente para fazê-lo
ouvir. É preciso fazer o múltiplo, não acrescentando sempre uma
dimensão superior, mas, ao contrário, da maneira simples, com força de
sobriedade, no nível das dimensões de que se dispõe, sempre n-1 (é
somente assim que o uno faz parte do múltiplo, estando sempre subtraído
dele). Subtrair o único da multiplicidade a ser constituída; escrever a
n-1. Um tal sistema poderia ser chamado de rizoma. Um rizoma como haste
subterrânea distingue-se absolutamente das raízes e radículas. Os
bulbos, os tubérculos, são rizomas. Plantas com raiz ou radícula podem
ser rizomórficas num outro sentido inteiramente diferente: é uma
questão de saber se a botânica, em sua especificidade, não seria
inteiramente rizomórfica. Até animais o são, sob sua forma matilha;
ratos são rizomas. As tocas o são, com todas suas funções de hábitat,
de provisão, de deslocamento, de evasão e de ruptura. O rizoma nele
mesmo tem formas muito diversas, desde sua extensão superficial
ramificada em todos os sentidos até suas concreções em bulbos e
tubérculos. Há rizoma quando os ratos deslizam uns sobre os outros. Há
o melhor e o pior no rizoma: a batata e a grama, a erva daninha. Animal
e planta, a grama é o capim-pé-de-galinha. Sentimos que não
convenceremos ninguém se não enumerarmos certas características
aproximativas do rizoma.
1o e 2o - Princípios de conexão e de heterogeneidade: qualquer ponto de
um rizoma pode ser conectado a qualquer outro e deve sê-lo. É muito
diferente da árvore ou da raiz que fixam um ponto, uma ordem. A árvore
lingüística à maneira de Chomsky começa ainda num ponto S e procede por
dicotomia. Num rizoma, ao contrário, cada traço não remete
necessariamente a um traço lingüístico: cadeias semióticas de toda
natureza são aí conectadas a modos de codificação muito diversos,
cadeias biológicas, políticas, econômicas, etc., colocando em jogo não
somente regimes de signos diferentes, mas também estatutos de estados
de coisas. Os "Agenciamentos coletivos de enunciação funcionam, com
efeito, diretamente nos agenciamentos maquínicos, e não se pode
estabelecer um corte radical entre os regimes de signos e seus objetos.
Na lingüística, mesmo quando se pretende ater-se ao explícito e nada
supor da língua, acaba-se permanecendo no interior das esferas de um
discurso que implica ainda modos de agencia-mento e tipos de poder
sociais particulares. A gramaticalidade de Chomsky, o símbolo
categorial S que domina todas as frases, é antes de tudo um marcador de
poder antes de ser um marcador sintático: você constituirá frases
gramaticalmente corretas, você dividirá cada enunciado em sintagma
nominal e sintagma verbal (primeira dicotomia...). Não se criticarão
tais modelos lingüísticos por serem demasiado abstratos, mas, ao
contrário, por não sê-lo bastante, por não atingir a máquina abstrata
que opera a conexão de uma língua com os conteúdos semânticos e
pragmáticos de enunciados, com agenciamentos coletivos de enunciação,
com toda uma micropolítica do campo social. Um rizoma não cessaria de
conectar cadeias semióticas, organizações de poder, ocorrências que
remetem às artes, às ciências, às lutas sociais. Uma cadeia semiótica é
como um tubérculo que aglomera atos muito diversos, lingüísticos, mas
também perceptivos, mímicos, gestuais, cogitativos: não existe língua
em si, nem universalidade da linguagem, mas um concurso de dialetos, de
patoás, de gírias, de línguas especiais. Não existe locutor-auditor
ideal, como também não existe comunidade lingüística homogênea. A
língua é, segundo uma fórmula de Weinreich, "uma realidade
essencialmente heterogênea". Não existe uma língua-mãe, mas tomada de
poder por uma língua dominante dentro de uma multiplicidade política. A
língua se estabiliza em torno de uma paróquia, de um bispado, de uma
capital. Ela faz bulbo. Ela evolui por hastes e fluxos subterrâneos, ao
longo de vales fluviais ou de linhas de estradas de ferro, espalha-se
como manchas de óleo¹. Podem-se sempre efetuar, na língua,
decomposições estruturais internas: isto não é fundamentalmente
diferente de uma busca das raízes. Há sempre algo de genealógico numa
árvore, não é um método popular. Ao contrário, um método de tipo rizoma
é obrigado a analisar a linguagem efetuando um descentramento sobre
outras dimensões e outros registros. Uma língua não se fecha sobre si
mesma senão em uma função de impotência.
1 - Cf. Bertil Malmberg, Les nouvelles tendances de la linguistique. P.U.F. (o exemplo do dialeto castelhano), pp 97 sq.
3.o
- Princípio de multiplicidade: é somente quando o múltiplo é
efetivamente tratado como substantivo, multiplicidade, que ele não tem
mais nenhuma relação com o uno como sujeito ou como objeto, como
realidade natural ou espiritual, como imagem e mundo. As
multiplicidades são rizomáticas e denunciam as pseudomultiplicidades
arborescentes. Inexistência, pois, de unidade que sirva de pivô no
objeto ou que se divida no sujeito. Inexistência de unidade ainda que
fosse para abortar no objeto e para "voltar" no sujeito. Uma
multiplicidade não tem nem sujeito nem objeto, mas somente
determinações, grandezas, dimensões que não podem crescer sem que mude
de natureza (as leis de combinação crescem então com a multiplicidade).
Os fios da marionete, considerados como rizoma ou multiplicidade, não
remetem à vontade suposta una de um artista ou de um operador, mas à
multiplicidade das fibras nervosas que formam por sua vez uma outra
marionete seguindo outras dimensões conectadas às primeiras. "Os fios
ou as hastes que movem as marionetes — chamemo-los a trama. Poder-se-ia
objetar que sua multiplicidade reside na pessoa do ator que a projeta
no texto. Seja, mas suas fibras nervosas formam por sua vez uma trama.
E eles mergulham através de uma massa cinza, a grade, até o
indiferenciado... O jogo se aproxima da pura atividade dos tecelões, a
aqueles que os mitos atribuem às Parcas e às Norns2.
2
Ernst Junger, Approches drogues et ivresse, Table ronde, p. 304, 218.
[Na mitologia germânica, a Norns correspondem às Parcas latinas que,
por sua vez, correspondem às Moiras gregas (Moirai): Átropo, Clato e
Láquesis, divindades fiandeiras que tecem a regulação da vida, desde o
nascimento até a morte]
Um agenciamento é precisamente este crescimento das dimensões numa
multiplicidade que muda necessariamente de natureza à medida que ela
aumenta suas conexões. Não existem pontos ou posições num rizoma como
se encontra numa estrutura, numa árvore, numa raiz. Existem somente
linhas. Quando Glenn Gould acelera a execução de uma passagem não age
exclusivamente como virtuose; transforma os pontos musicais em linhas,
faz proliferar o conjunto. Acontece que o número deixou de ser um
conceito universal que mede os elementos segundo seu lugar numa
dimensão qualquer, para tornar-se ele próprio uma multiplicidade
variável segundo as dimensões consideradas (primado do domínio sobre um
complexo de números ligado a este domínio). Nós não temos unidades de
medida, mas somente multiplicidades ou variedades de medida. A noção de
unidade aparece unicamente quando se produz numa multiplicidade uma
tomada de poder pelo significante ou um processo correspondente de
subjetivação: é o caso da unidade-pivô que funda um conjunto de
correlações biunívocas entre elementos ou pontos objetivos, ou do Uno
que se divide segundo a lei de uma lógica binária da diferenciação no
sujeito. A unidade sempre opera no seio de uma dimensão vazia
suplementar àquela do sistema considerado (sobrecodificação). Mas
acontece, justamente, que um rizoma, ou multiplicidade, não se deixa
sobrecodificar, nem jamais dispõe de dimensão suplementar ao número de
suas linhas, quer dizer, à multiplicidade de números ligados a estas
linhas. Todas as multiplicidades são planas, uma vez que elas
preenchem, ocupam todas as suas dimensões: falar-se-á então de um plano
de consistência das multiplicidades, se bem que este "plano" seja de
dimensões crescentes segundo o número de conexões que se estabelecem
nele. As multiplicidades se definem pelo fora: pela linha abstrata,
linha de fuga ou de desterritorialização segundo a qual elas mudam de
natureza ao se conectarem às outras. O plano de consistência (grade) é
o fora de todas as multiplicidades. A linha de fuga marca, ao mesmo
tempo: a realidade de um número de dimensões finitas que a
multiplicidade preenche efetivamente; a impossibilidade de toda
dimensão suplementar, sem que a multiplicidade se transforme segundo
esta linha; a possibilidade e a necessidade de achatar todas estas
multiplicidades sobre um mesmo plano de consistência ou de
exterioridade, sejam quais forem suas dimensões. O ideal de um livro
seria expor toda coisa sobre um tal plano de exterioridade, sobre uma
única página, sobre uma mesma paragem: acontecimentos vividos,
determinações históricas, conceitos pensados, indivíduos, grupos e
formações sociais. Kleist inventou uma escrita deste tipo, um
encadeamento quebradiço de afetos com velocidades variáveis,
precipitações e transformações, sempre em correlação com o fora. Anéis
abertos. Assim seus textos se opõem de todos os pontos de vista ao
livro clássico e romântico, constituído pela interioridade de uma
substância ou de um sujeito. O livro-máquina de guerra, contra o
livro-aparelho de Estado. As multiplicidades planas a n dimensões são a
a-significantes e a-subjetivas. Elas são designadas por artigos
indefinidos, ou antes partitivos (c'est du chiendent, du rhizome...) |é
grama, é rizoma...]
4° - Princípio de ruptura a-significante: contra os cortes demasiado
significantes que separam as estruturas, ou que atravessam uma
estrutura. Um rizoma pode ser rompido, quebrado em um lugar qualquer, e
também retoma segundo uma ou outra de suas linhas e segundo outras
linhas. É impossível exterminar as formigas, porque elas formam um
rizoma animal do qual a maior parte pode ser destruída sem que ele
deixe de se reconstruir. Todo rizoma compreende linhas de
segmentaridade segundo as quais ele é estratificado, territorializado,
organizado, significado, atribuído, etc; mas compreende também linhas
de desterritorialização pelas quais ele foge sem parar. Há ruptura no
rizoma cada vez que linhas segmentares explodem numa linha de fuga, mas
a linha de fuga faz parte do rizoma. Estas linhas não param de se
remeter uma às outras. É por isto que não se pode contar com um
dualismo ou uma dicotomia, nem mesmo sob a forma rudimentar do bom e do
mau. Faz-se uma ruptura, traça-se uma linha de fuga, mas corre-se
sempre o risco de reencontrar nela organizações que reestratificam o
conjunto, formações que dão novamente o poder a um significante,
atribuições que reconstituem um sujeito — tudo o que se quiser, desde
as ressurgências edipianas até as concreções fascistas. Os grupos e os
indivíduos contêm microfascismos sempre à espera de cristalização. Sim,
a grama é também rizoma. O bom o mau são somente o produto de uma
seleção ativa e temporária a ser recomeçada.
Como é possível que os movimentos de desterritorialização e os
processos de reterritorialização não fossem relativos, não estivessem
em perpétua ramificação, presos uns aos outros? A orquídea se
desterritorializa, formando uma imagem, um decalque de vespa; mas a
vespa se reterritorializa sobre esta imagem. A vespa se
desterritorializa, no entanto, tornando-se ela mesma uma peça no
aparelho de reprodução da orquídea; mas ela reterritorializa a
orquídea, transportando o pólen. A vespa e a orquídea fazem rizoma em
sua heterogeneidade. Poder-se-ia dizer que a orquídea imita a vespa
cuja imagem reproduz de maneira significante (mimese, mimetismo,
fingimento, etc). Mas isto é somente verdade no nível dos estratos —
paralelismo entre dois estratos determinados cuja organização vegetal
sobre um deles imita uma organização animal sobre o outro. Ao mesmo
tempo trata-se de algo completamente diferente: não mais imitação, mas
captura de código, mais-valia de código, aumento de valência,
verdadeiro devir, devir-vespa da orquídea, devir-orquídea da vespa,
cada um destes devires assegurando a desterritorialização de um dos
termos e a reterritorialização do outro, os dois devires se encadeando
e se revezando segundo uma circulação de intensidades que empurra a
desterritorialização cada vez mais longe. Não há imitação nem
semelhança, mas explosão de duas séries heterogêneas na linha de fuga
composta de um rizoma comum que não pode mais ser atribuído, nem
submetido ao que quer que seja de significante. Rémy Chauvin diz muito
bem: "Evolução a-paralela de dois seres que não têm absolutamente nada
a ver um com o outro3". Mais geralmente, pode acontecer que os esquemas
de evolução sejam levados a abandonar o velho modelo da árvore e da
descendência. Em certas condições, um vírus pode conectar-se a células
germinais e transmitir-se como gene celular de uma espécie complexa;
além disso, ele poderia fugir, passar em células de uma outra espécie,
não sem carregar "informações genéticas" vindas do primeiro anfitrião
(como evidenciam as pesquisas atuais de Benveniste e Todaro sobre um
vírus de tipo C, em sua dupla conexão com o ADN do babuíno e o ADN de
certas espécies de gatos domésticos). Os esquemas de evolução não se
fariam mais somente segundo modelos de descendência arborescente, indo
do menos diferenciado ao mais diferenciado, mas segundo um rizoma que
opera imediatamente no heterogêneo e salta de uma linha já diferenciada
a uma outra4. É o caso, ainda aqui, da a evolução a-paralela do babuíno
e do gato, onde um não é evidentemente o modelo do outro, nem o outro a
cópia do primeiro (um devir babuíno no gato não significaria que o gato
"taça como o babuíno). Nó:, fazemos rizoma com nossos vírus, ou antes,
nossos vírus nos fazem fazer rizoma com outros animais. Como diz Jacob,
as transferências de material genético por intermédio de vírus ou por
outros procedimentos, as fusões de células saídas de espécies
diferentes, têm resultados análogos àqueles dos "amores abomináveis
apreciados na Antigüidade e na Idade Média5". Comunicações transversais
entre linhas diferenciadas embaralham as árvores genealógicas. Buscar
sempre o molecular, ou mesmo a partícula sub-molecular com a qual
fazemos aliança. Evoluímos e morremos devido a nossas gripes
polimórficas e rizomáticas mais do que devido a nossas doenças de
descendência ou que têm elas mesma sua descendência. O rizoma é uma
antigenealogia.
3 Rémy Chauvin, in Entretiens sur Ia sexualité, Plon, p. 205.
4 Sobre os trabalhos de R.E. Benveniste e G.J. Todaro, cf. Yves
Christen, "Le role des virus dans 1'évolution", La Recberche, n° 54,
março de 1975: "Após integração-extração numa célula, e tendo havido um
erro de excisão, os vírus podem carregar fragmentos de ADN de seu
anfitrião e transmiti-los para novas células: é, aliás, a base do que
se chama engenharia genética. Daí resulta que a informação genética
própria de um organismo poderia ser transferida a um outro graças aos
vírus. Se se interessa pelas situações extremas, pode-se até imaginar
que esta transferência de informação poderia efetuar-se de uma espécie
mais evoluída a uma espécie menos evoluída ou geradora da precedente.
Este mecanismo funcionaria então em sentido inverso àquele que a
evolução utiliza de uma maneira clássica. Se tais passagens de
informações tivessem tido uma grande importância, seríamos até levados
em certos casos a substituir esquemas reticulares (com comunicações
entre ramos após suas diferenciações) aos esquemas em arbusto ou em
árvore que servem boje para representar a evolução" (p. 271).
5 François Jacob, La logique du vivant, Gallimard, pp 312, 333.
É a mesma coisa quanto ao livro e ao mundo: o livro não é a imagem do
mundo segundo uma crença enraizada. Ele faz rizoma com o mundo, há
evolução a-paralela do livro e do mundo, o livro assegura a
desterritorialização do mundo, mas o mundo opera uma
reterritorialização do livro, que se desterritorializa por sua vez em
si mesmo no mundo (se ele é disto capaz e se ele pode). O mimetismo é
um conceito muito ruim, dependente de uma lógica binária, para
fenômenos de natureza inteiramente diferente. O crocodilo não reproduz
um tronco de árvore assim como o camaleão não reproduz as cores de sua
vizinhança. A Pantera Cor-de-rosa nada imita, nada reproduz; ela pinta
o mundo com sua cor, rosa sobre rosa, é o seu devir-mundo, de forma a
tornar-se ela mesma imperceptível, ela mesma a-significante, fazendo
sua ruptura, sua linha de fuga, levando até o fim sua "evolução
a-paralela". Sabedoria das plantas: inclusive quando elas são de
raízes, há sempre um fora onde elas fazem rizoma com algo — com o
vento, com um animal, com o homem (e também um aspecto pelo qual os
próprios animais fazem rizoma, e os homens etc.) "A embriaguez como
irrupção triunfal da planta em nós". Seguir sempre o rizoma por
ruptura, alongar, prolongar, revezar a linha de fuga, fazê-la variar,
até produzir a linha mais abstrata e a mais tortuosa, com n dimensões,
com direções rompidas. Conjugar os fluxos desterritorializados. Seguir
as plantas: começando por fixar os limites de uma primeira linha
segundo círculos de convergência ao redor de singularidades sucessivas;
depois, observando-se, no interior desta linha, novos círculos de
convergência se estabelecem com novos pontos situados fora dos limites
e em outras direções. Escrever, fazer rizoma, aumentar seu território
por desterritorialização, estender a linha de fuga até o ponto em que
ela cubra todo o plano de consistência em uma máquina abstrata.
"Primeiro, caminhe até tua primeira planta e lá observe atentamente
como escoa a água de torrente a partir deste ponto. A chuva deve ter
transportado os grãos para longe. Siga as valas que a água escavou, e
assim conhecerá a direção do escoamento. Busque então a planta que,
nesta direção, encontra-se o mais afastado da tua. Todas aquelas que
crescem entre estas duas são para ti. Mais tarde, quando esta últimas
derem por sua vez grãos, tu poderás, seguindo o curso das águas, a
partir de cada uma destas plantas, aumentar teu território6". A música
nunca deixou de fazer passar suas linhas de fuga, como outras tantas
"multiplicidades de transformação", mesmo revertendo seus próprios
códigos, os que a estruturam ou a arborificam; por isto a forma
musical, até em suas rupturas e proliferações, é comparável à erva
daninha, um rizoma7.
6 Carlos Castaneda, L’herbe du diable et la petite fumée, Soleil noir, p. 160.
7 Pierre Boulez, Par volonté et par hasard, Ed. du Seuil "Você a planta
num certo terreno e, bruscamente, ela se põe a proliferar como erva
daninha". E passim, sobre a proliferação musical, p. 89: "uma música
que flutua, na qual a própria escrita traz para o instrumentista uma
impossibilidade de preservar uma coincidência com um tempo ritmado".
5º e 6o - Princípio de cartografia e de decalcomania: um rizoma não
pode ser justificado por nenhum modelo estrutural ou gerativo. Ele é
estranho a qualquer idéia de eixo genético ou de estrutura profunda. Um
eixo genético é como uma unidade pivotante objetiva sobre a qual se
organizam estados sucessivos; uma estrutura profunda é, antes, como que
uma seqüência de base decomponível em constituintes imediatos, enquanto
que a unidade do produto se apresenta numa outra dimensão,
transformacional e subjetiva. Não se sai, assim, do modelo
representativo da árvore ou da raiz-pivotante ou fasciculada (por
exemplo, a "árvore" chomskyana associada à seqüência de base,
representando o processo de seu engendra-mento segundo uma lógica
binária). Variação sobre o mais velho pensamento. Do eixo genético ou
da estrutura profunda, dizemos que eles são antes de tudo princípios de
decalque, reprodutíveis ao infinito. Toda lógica da árvore é uma lógica
do decalque e da reprodução. Tanto na Lingüística quanto na
Psicanálise, ela tem como objeto um inconsciente ele mesmo
representante, cristalizado em complexos codificados, repartido sobre
um eixo genético ou distribuído numa estrutura sintagmática. Ela tem
como finalidade a descrição de um estado de fato, o reequilíbrio de
correlações intersubjetivas, ou a exploração de um inconsciente já dado
camuflado, nos recantos obscuros da memória e da linguagem. Ela
consiste em decalcar algo que se dá já feito, a partir de uma estrutura
que sobrecodifica ou de um eixo que suporta. A árvore articula e
hierarquiza os decalques, os decalques são como folhas da árvore.
Diferente é o rizoma, mapa e não decalque. Fazer o mapa, não o
decalque. A orquídea não reproduz o decalque da vespa, ela compõe um
mapa com a vespa no seio de um rizoma. Se o mapa se opõe ao decalque é
por estar inteiramente voltado para uma experimentação ancorada no
real. O mapa não reproduz um inconsciente fechado sobre ele mesmo, ele
o constrói. Ele contribui para a conexão dos campos, para o desbloqueio
dos corpos sem órgãos, para sua abertura máxima sobre um plano de
consistência. Ele faz parte do rizoma. O mapa é aberto, é conectável em
todas as suas dimensões, desmontável, reversível, suscetível de receber
modificações constantemente. Ele pode ser rasgado, revertido,
adaptar-se a montagens de qualquer natureza, ser preparado por um
indivíduo, um grupo, uma formação social. Pode-se desenhá-lo numa
parede, concebê-lo como obra de arte, construí-lo como uma ação
política ou como uma meditação. Uma das características mais
importantes do rizoma talvez seja a de ter sempre múltiplas entradas; a
toca, neste sentido, é um rizoma animal, e comporta às vezes uma nítida
distinção entre linha de fuga como corredor de deslocamento e os
estratos de reserva ou de habitação (cf. por exemplo, a lontra). Um
mapa tem múltiplas entradas contrariamente ao decalque que volta sempre
"ao mesmo". Um mapa é uma questão de performance, enquanto que o
decalque remete sempre a uma presumida "competência". Ao contrário da
psicanálise, da competência psicanalítica, que achata cada desejo e
enunciado sobre um eixo genético ou uma estrutura sobrecodificante e
que produz ao infinito monótonos decalques dos estágios sobre este eixo
ou dos constituintes nesta estrutura, a esquizoanálise recusa toda
idéia de fatalidade decalcada, seja qual for o nome que se lhe dê,
divina, anagógica, histórica, econômica, estrutural, hereditária ou
sintagmática. (Vê-se bem como Melanie Klein não compreende o problema
de cartografia de uma de suas crianças pacientes, o pequeno Richard, e
contenta-se em produzir decalques estereotipados — Édipo, o bom e o mau
papai, a má e boa mamãe — enquanto que a criança tenta com desespero
prosseguir uma performance que a psicanálise desconhece
absolutamente8.) As pulsões e objetos parciais não são nem estágios
sobre o eixo genético, nem posições numa estrutura profunda, são opções
políticas para problemas, entradas e saídas, impasses que a criança
vive politicamente, quer dizer, com toda força de seu desejo.
8 Cf. Melanie Klein, Psychanalyse d'un enfant, Tchou: o papel dos mapas de guerra nas atividades de Richard.
Entretanto será que nós não restauramos um simples dualismo opondo os
mapas aos decalques, como um bom e um mau lado? Não é próprio do mapa
poder ser decalcado? Não é próprio de um rizoma cruzar as raízes,
confundir-se às vezes com elas? Um mapa não comporta fenômenos de
redundância que já são como que seus próprios decalques? Uma
multiplicidade não tem seus estratos onde se enraízam unificações e
totalizações, massificações, mecanismos miméticos, tomadas de poder
significantes, atribuições subjetivas? As linhas de fuga, inclusive
elas, não vão reproduzir, a favor de sua divergência eventual,
formações que elas tinham por função desfazer ou inverter? Mas o
inverso é também verdadeiro, é uma questão de método: é preciso sempre
projetar o decalque sobre o mapa. E esta operação não é de forma alguma
simétrica à precedente, porque, com todo o rigor, não é exato que um
decalque reproduza o mapa. Ele é antes como uma foto, um rádio que
começaria por eleger ou isolar o que ele tem a intenção de reproduzir,
com a ajuda de meios artificiais, com a ajuda de colorantes ou outros
procedimentos de coação. É sempre o imitador quem cria seu modelo e o
atrai. O decalque já traduziu o mapa em imagem, já transformou o rizoma
em raízes e radículas. Organizou, estabilizou, neutralizou as
multiplicidades segundo eixos de significância e de subjetivação que
são os seus. Ele gerou, estruturalizou o rizoma, e o decalque já não
reproduz senão ele mesmo quando crê reproduzir outra coisa. Por isto
ele é tão perigoso. Ele injeta redundâncias e as propaga. O que o
decalque reproduz do mapa ou do rizoma são somente os impasses, os
bloqueios, os germes de pivô ou os pontos de estruturação. Vejam a
Psicanálise e a Lingüística: uma só tirou decalques ou fotos do
inconsciente, a outra, decalques ou fotos da linguagem, com todas as
traições que isto supõe (não é de espantar que a Psicanálise tenha
ligado sua sorte à da Lingüística). Vejam o que acontece já ao pequeno
Hans em pura Psicanálise de criança: não se parou nunca de lhe QUEBRAR
SEU RIZOMA, de lhe MANCHAR SEU MAPA, de colocá-lo no bom lugar, de lhe
bloquear qualquer saída, até que ele deseje sua própria vergonha e sua
culpa, FOBIA (impede-se-lhe o rizoma do prédio, depois, o da rua,
enraizando-o na cama dos pais, radiculando-o sobre seu próprio corpo,
e, finalmente bloqueando-o sobre o professor Freud. Freud considera
explicitamente a cartografia do pequeno Hans, mas sempre somente para
rebatê-la sobre uma foto de família. E vejam o que faz Melanie Klein
com os mapas geopolíticos do pequeno Richard: ela tira fotos, ela faz
decalques, tirem fotos ou sigam o eixo, estágio genético ou destino
estrutural, seu rizoma será quebrado. Deixarão que vocês vivam e falem,
com a condição de impedir qualquer saída. Quando um rizoma é fechado,
arborificado, acabou, do desejo nada mais passa; porque é sempre por
rizoma que o desejo se move e produz. Toda vez que o desejo segue uma
árvore acontecem as quedas internas que o fazem declinar e o conduzem à
morte; mas o rizoma opera sobre o desejo por impulsões exteriores e
produtivas.
Por isto é tão importante tentar a outra operação, inversa mas não
simétrica. Religar os decalques ao mapa, relacionar as raízes ou as
árvores a um rizoma. Estudar o inconsciente, no caso do pequeno Hans,
seria mostrar como ele tenta constituir um rizoma, com a casa da
família, mas também com a linha de fuga do prédio, da rua, etc; como
estas linhas são obstruídas, como o menino é enraizado na família,
fotografado sob o pai, decalcado sobre a cama materna; depois, como a
intervenção do professor Freud assegura uma tomada de poder do
significante como subjetivação dos afetos; como o menino não pode mais
fugir senão sob a forma de um devir-animal apreendido como vergonhoso e
culpado (o devir-cavalo do pequeno Hans, verdadeira opção política).
Seria necessário sempre ressituar os impasses sobre o mapa e por aí
abri-los sobre linhas de fuga possíveis. A mesma coisa para um mapa de
grupo: mostrar até que ponto do rizoma se formam fenômenos de
massificação, de burocracia, de leadership, de fascistização, etc., que
linhas subsistem, no entanto, mesmo subterrâneas, continuando a fazer
obscuramente rizoma. O método Deligny: produzir o mapa dos gestos e dos
movimentos de uma criança autista, combinar vários mapas para a mesma
criança, para várias crianças9... Se é verdade que o mapa ou o rizoma
têm essencialmente entradas múltiplas, consideraremos que se pode
entrar nelas pelo caminho dos decalques ou pela via das árvores-raízes,
observando as precauções necessárias (renunciando-se também aí a um
dualismo maniqueísta). Por exemplo, seremos seguidamente obrigados a
cair em impasses, a passar por poderes significantes e afetos
subjetivos, a nos apoiar em formações edipianas, paranóicas ou ainda
piores, assim como sobre territorialidades endurecidas que tornam
possíveis outras operações transformacionais. Pode ser até que a
Psicanálise sirva, não obstante ela, de ponto de apoio. Em outros
casos, ao contrário, nos apoiaremos diretamente sobre uma linha de fuga
que permita explodir os estratos, romper as raízes e operar novas
conexões. Há, então, agencia-mentos muito diferentes de
mapas-decalques, rizomas-raízes, com coeficientes variáveis de
desterritorialização. Existem estruturas de árvore ou de raízes nos
rizomas, mas, inversamente, um galho de árvore ou uma divisão de raiz
podem recomeçar a brotar em rizoma. A demarcação não depende aqui de
análises teóricas que impliquem universais, mas de uma pragmática que
compõe as multiplicidades ou conjuntos de intensidades. No coração de
uma árvore, no oco de uma raiz ou na axila de um galho, um novo rizoma
pode se formar. Ou então é um elemento microscópico da árvore raiz, uma
radícula, que incita a produção de um rizoma. A contabilidade e a
burocracia procedem por decalques: elas podem, no entanto, começar a
brotar, a lançar hastes de rizoma, como num romance de Kafka. Um traço
intensivo começa a trabalhar por sua conta, uma percepção alucinatória,
uma sinestesia, uma mutação perversa, um jogo de imagens se destacam e
a hegemonia do significante é recolocada em questão. Semióticas
gestuais, mímicas, lúdicas etc. retomam sua liberdade na criança e se
liberam do "decalque", quer dizer, da competência dominante da língua
do mestre — um acontecimento microscópico estremece o equilíbrio do
poder local. Assim, as árvores gerativas, construídas a partir do
modelo sintagmático de Chomsky, poderiam abrir-se em todos os sentidos,
fazer, por sua vez, rizoma10. Ser rizomorfo é produzir hastes e
filamentos que parecem raízes, ou, melhor ainda, que se conectam com
elas penetrando no tronco, podendo fazê-las servir a novos e estranhos
usos. Estamos cansados da árvore. Não devemos mais acreditar em
árvores, em raízes ou radículas, já sofremos muito. Toda a cultura
arborescente é fundada sobre elas, da biologia à lingüística. Ao
contrário, nada é belo, nada é amoroso, nada é político a não ser que
sejam arbustos subterrâneos e as raízes aéreas, o adventício e o
rizoma. Amsterdã, cidade não enraizada, cidade rizoma com seus canais
em hastes, onde a utilidade se conecta à maior loucura, em sua relação
com uma máquina de guerra comercial.
9 Fernand Deligny, "Voix et voir", Cahiers de 1'immuable, Recherches, abril, 1975.
10 Cf. Dieter Wunderlich, "Pragmatique, situation d’énonciation et
Deixis", in Langages, n" 26, junho de 1972, pp. 50 sq: as tentativas de
Mac Cawley, de Sadock e de Wunderlich para introduzir "propriedades
pragmáticas" nas árvores chomskianas.
O
pensamento não é arborescente e o cérebro não é uma matéria enraizada
nem ramificada. O que se chama equivocadamente de "dendritos" não
assegura uma conexão dos neurônios num tecido contínuo. A
descontinuidade das células, o papel dos axônios, o funcionamento das
sinapses, a existência de microfendas sinápticas, o salto de cada
mensagem por cima destas fendas fazem do cérebro uma multiplicidade
que, no seu plano de consistência ou em sua articulação, banha todo um
sistema, probalístico incerto, un certain nervous system. Muitas
pessoas têm uma árvore plantada na cabeça, mas o próprio cérebro é
muito mais uma erva do que uma árvore. "O axônio e o dendrito
enrolam-se um ao redor do outro como a campanulácia em torno de
espinheiro, com uma sinapse em cada espinho¹¹." É como no caso da
memória... Os neurólogos, os psicofisiólogos, distinguem uma memória
longa e uma memória curta (da ordem de um minuto). Ora, a diferença não
é somente quantitativa: a memória curta é de tipo rizoma, diagrama,
enquanto que a longa é arborescente e centralizada (impressão, engrama,
decalque ou foto). A memória curta não é de forma alguma submetida a
uma lei de contigüidade ou de imediatidade em relação a seu objeto; ela
pode acontecer à distância, vir ou voltar muito tempo depois, mas
sempre em condições de descontinuidade, de ruptura e de multiplicidade.
Além disto, as duas memórias não se distinguem como dois modos
temporais de apreensão da mesma coisa; não é a mesma coisa, não é a
mesma recordação, não é também a mesma idéia que elas apreendem.
Esplendor de um Idéia curta: escreve-se com a memória curta, logo, com
idéias curtas, mesmo que se leia e releia com a longa memória dos
longos conceitos. A memória curta compreende o esquecimento como
processo; ela não se confunde com o instante, mas com o rizoma
coletivo, temporal e nervoso. A memória longa (família, raça, sociedade
ou civilização) decalca e traduz, mas o que ela traduz continua a agir
nela, à distância, a contratempo, "intempestivamente", não
instantaneamente.
11 Steven Rose, Le cerveau consaent, Ed. du Seuil, p. 97, e sobre a memória, pp. 250
sq.
A árvore ou a raiz inspiram uma triste imagem do pensamento que não
pára de imitar o múltiplo a partir de uma unidade superior, de centro
ou de segmento. Com efeito, se se considera o conjunto galhos-raízes, o
tronco desempenha o papel de segmento oposto para um dos subconjuntos
percorridos de baixo para cima: um tal segmento será um "dipolo de
ligação", diferentemente dos "dipolos-unidades" que formam os raios que
emana de um único centro12. Mas as próprias ligações podem proliferar
como no sistema radícula, permanecendo no Um-Dois e nas multiplicidades
só fingidas. As regenerações, as reproduções, os retornos, as hidras e
as medusas não nos fazem também sair disto. Os sistemas arborescentes
são sistemas hierárquicos que comportam centros de significância e de
subjetivação, autômatos centrais como memórias organizadas. Acontece
que os modelos correspondentes são tais que um elemento só recebe suas
informações de uma unidade superior e uma atribuição subjetiva de
ligações preestabelecidas. Vê-se bem isso nos problemas atuais de
informática e de máquinas eletrônicas, que conservam ainda o mais
arcaico pensamento, dado que eles conferem o poder a uma memória ou a
um órgão central. Num belo artigo, que denuncia a fabricação de imagens
das "arborescências de comando" (sistemas centrados ou estruturas
hierárquicas), Pierre Rosen-stiehl e Jean Petitot observam: "Admitir o
primado das estruturas hierárquicas significa privilegiar as estruturas
arborescentes. (...) A forma arborescente admite uma explicação
topológica. (...) Num sistema hierárquico, um indivíduo admite somente
um vizinho ativo, seu superior hierárquico. (...) Os canais de
transmissão são preestabelecidos: a arborescência preexiste ao
indivíduo que nela se integra num lugar preciso" (significância e
subjetivação). Os autores assinalam, a esse respeito, que, mesmo quando
se acredita atingir uma multiplicidade, pode acontecer que esta
multiplicidade seja falsa — o que chamamos tipo radícula — porque sua
apresentação ou seu enunciado de aparência não hierárquica não admitem
de fato senão uma solução totalmente hierárquica: é o caso do famoso
teorema da amizade — "se, numa sociedade, dois indivíduos quaisquer têm
exatamente um amigo comum, então existe um indivíduo amigo de todos os
outros". (Como dizem Rosenstiehl e Petitot, quem é o amigo comum? "o
amigo universal desta sociedade de casais, mestre, confessor, médico?
outras tantas idéias que são estranhamente distantes dos axiomas de
partida", o amigo do gênero humano? ou bem o filósofo como aparece no
pensamento clássico, mesmo se é a unidade abortada que valha somente
por sua própria ausência ou sua subjetividade, dizendo eu não sei nada,
eu não sou nada.) Os autores falam, a esse respeito, de teoremas de
ditadura. Este é o princípio das árvores-raízes, ou a saída, a solução
das radículas, a estrutura do Prover13.
12
Cf. Julien Pacotte, Le réseau arborescent, schème primordial de Ia
pensée, Hermann, 1936. Este livro analisa e desenvolve diversos
esquemas da forma de arborescência, que não é apresentada como simples
formalismo, mas como "o fundamento real do pensamento formal". Ele leva
ao extremo o pensamento clássico. Recolhe todas as formas do
"Uno-Dois", teoria do dipolo. O conjunto tronco-raízes-galhos propicia
o seguinte esquema:
Mais recentemente, Michel Serres
analisou as variedades e seqüências de árvores nos domínios científicos
os mais diferentes: como a árvore se forma a partir de uma "rede" (La
traduction Ed. de Minuit, pp. 27 sq.; Feux et signaux de brume, Grasset
pp. 35 sq.).
13 Pierre Rosenstiehl e Jean Petitot, "Automate asocial et systèmes
acentrés", in Communications, n° 22, 1974. Sobre o teorema da amizade,
cf. H.S. Wilf, The Friendsbip Theorem in Combinatorial Mathematics,
Welsh Academic Press; e, sobre um teorema de mesmo tipo, dito de
indecisão coletiva, cf. K.J. Arrow, Choix collectif et préférences
individuelles, Calmann-Lévy.
A
estes sistemas centrados, os autores opõem sistemas a-centrados, redes
de autômatos finitos, nos quais a comunicação se faz de um vizinho a um
vizinho qualquer, onde as hastes ou canais não preexistem, nos quais os
indivíduos são todos intercambiáveis, se definem somente por um estado
a tal momento, de tal maneira que as operações locais se coordenam e o
resultado final global se sincroniza independente de uma instância
central. Uma transdução de estados intensivos substitui a topologia, e
"o grafismo que regula a circulação de informação é de algum modo o
oposto do grafismo hierárquico... Não há qualquer razão para que esse
grafismo seja uma árvore (chamávamos mapa um tal grafismo). Problema da
máquina de guerra, ou do Firing Squad: um general é de fato necessário
para que n indivíduos cheguem ao mesmo tempo ao momento do disparo? A
solução sem general aparece para uma multiplicidade a-centrada que
comporta um número finito de estados e de sinais de velocidade
correspondente, do ponto de vista de um rizoma de guerra ou de uma
lógica da guerrilha, sem decalque, sem cópia de uma ordem central.
Demonstra-se mesmo que uma tal multiplicidade, agenciamento ou
sociedade maquínicos, rejeita como "intruso a-social" todo autômato
centralizador, unificador14. N, desde então, será sempre n-1.
Rosenstiehl e Petitot insistem no fato de que a oposição centro
a-centrado vale menos pelas coisas que ela designa do que pelos modos
de cálculos que aplica às coisas. Árvores podem corresponder ao rizoma,
ou, inversamente, germinar em rizoma. E é verdade geralmente que uma
mesma coisa admite os dois modos de cálculos ou os dois tipos de
regulação, mas não sem mudar singularmente de estado tanto num caso
quanto no outro. Seja, por exemplo, ainda a Psicanálise: não somente em
sua teoria, mas em sua prática de cálculo e de tratamento, ela submete
o inconsciente a estruturas arborescentes, a grafismos hierárquicos, a
memórias recapituladoras, órgãos centrais, falo, árvore-falo. A
Psicanálise não pode mudar de método a este respeito: sobre uma
concepção ditatorial do inconsciente ela funda seu próprio poder
ditatorial. A margem de manobra da Psicanálise é, por isto, muito
limitada. Há sempre um general, um chefe, na Psicanálise como em seu
objeto (general Freud). Ao contrário, tratando o inconsciente como um
sistema a-centrado, quer dizer, como uma rede maquínica de autômatos
finitos (rizoma), a esquizo-análise atinge um estado inteiramente
diferente do inconsciente. As mesmas observações valem em Lingüística;
Rosenstiehl e Petitot consideram com razão a possibilidade de uma
"organização a-centrada de uma sociedade de palavras". Para os
enunciados como para os desejos, a questão não é nunca reduzir o
inconsciente, interpretá-lo ou fazê-lo significar segundo uma árvore. A
questão é produzir inconsciente e, com ele, novos enunciados, outros
desejos: o rizoma é esta produção de inconsciente mesmo.
14
Ibid. O caráter principal do sistema a-centrado é que as iniciativas
locais são coordenadas independentemente de uma instância central,
fazendo-se cálculo no conjunto da rede (multiplicidade). "É por isto
que o único lugar onde pode ser constituído um fichário possível das
pessoas está entre as próprias pessoas, as únicas capazes de serem
portadores de sua descrição e de mantê-la em dia: a sociedade é o único
fichário de pessoas. Uma sociedade a-centrada natural rejeita como
intruso asocial o autômato centralizador" (p. 62). Sobre o "teorema de
Firing Squad", pp. 51-57. Acontece inclusive que generais, em seu sonho
de apropriação das técnicas formais de guerrilha, façam apelo a
multiplicidades de "módulos síncronos", "com base em células leves,
numerosas, mas independentes", comportando teoricamente só um mínimo de
poder central e de "modulação hierárquica": como, por exemplo, Guy
Brossollet, Essai sur la non-bataille, Belin, 1975.
É curioso como a árvore dominou a realidade ocidental e todo o
pensamento ocidental, da botânica à biologia, a anatomia, mas também a
gnoseologia, a teologia, a ontologia, toda a filosofia...: o
fundamento-raiz, Grund, roots e fundations. O Ocidente tem uma relação
privilegiada com a floresta e com o desmatamento; os campos
conquistados no lugar da floresta são povoados de plantas de grãos,
objeto de uma cultura de linhagens, incidindo sobre a espécie e de tipo
arborescente; a criação, por sua vez, desenvolvida em regime de
alqueire, seleciona as linhagens que formam uma arborescência animal. O
Oriente apresenta uma outra figura: a relação com a estepe e o jardim
(em outros casos, o deserto e o oásis) em vez de uma relação com a
floresta e o campo: uma cultura de tubérculos que procede por
fragmentação do indivíduo; um afastamento, um pôr entre parênteses a
criação confinada em espaços fechados ou relegada à estepe dos nômades.
Ocidente, agricultura de uma linhagem escolhida com muitos indivíduos
variáveis; Oriente, horticultura de um pequeno número de indivíduos
remetendo a uma grande gama de "clones". Não existiria no Oriente,
notadamente na Oceania, algo como que um modelo rizomático que se opõe
sob todos os aspectos ao modelo ocidental da árvore? Haudricourt vê aí
uma razão da oposição entre as morais ou filosofias da transcendência,
caras ao Ocidente, àquelas da imanência no Oriente: o Deus que semeia e
que ceifa, por oposição ao Deus que pica e desenterra (picar contra
semear15). Transcendência, doença propriamente européia. E, de resto,
não é a mesma música, a terra, não tem aí a mesma música. E também não
é a mesma sexualidade: as plantas de grão, mesmo reunindo os dois
sexos, submetem a sexualidade ao modelo da reprodução; o rizoma, ao
contrário, é uma liberação da sexualidade, não somente em relação à
reprodução, mas também em relação à genitalidade. No Ocidente a árvore
plantou-se nos corpos, ela endureceu e estratificou até os sexos. Nós
perdemos o rizoma ou a erva. Henry Miller: "A China é a erva daninha no
canteiro de repolhos da humanidade (...). A erva daninha é a Nêmesis
dos esforços humanos. Entre todas as existências imaginárias que nós
atribuímos às plantas, aos animais e às estrelas, é talvez a erva
daninha aquela que leva a vida mais sábia. É verdade que a erva não
produz flores nem porta-aviões, nem Sermões sobre a montanha (...).
Mas, afinal de contas, é sempre a erva quem diz a última palavra.
Finalmente, tudo retorna ao estado de China. É isto que os
historiadores chamam comumente de trevas da Idade Média. A única saída
é a erva (...). A erva existe exclusivamente entre os grandes espaços
não cultivados. Ela preenche os vazios. Ela cresce entre e no meio das
outras coisas. A flor é bela, o repolho útil, a papoula enlouquece. Mas
a erva é transbordamento, ela é uma lição de moral16". — De que China
fala Miller, da antiga, da atual, de uma imaginária, ou bem de uma
outra ainda que faria parte de um mapa movediço?
15
Sobre a agricultura ocidental das plantas de grão e a horticultura
oriental dos tubérculos, sobre a oposição semear picar, sobre as
diferenças em relação à criação animal, cf. Haudricourt, "Domestication
des animaux, culture des plantes et traitement d'autrui", (L’home,
1962) e L'origine des clones et des clans" (L'home, janvier 1964). O
milho e o arroz não são objeções: são cereais "adotados tardiamente
pelos cultivadores de tubérculos" e tratados de maneira correspondente;
é provável que o arroz "tenha aparecido como erva daninha nos sulcos
destinados a outras culturas.
16 Henry Miller, Hamlet, Corrêa, pp. 48-49.
É preciso criar um lugar à parte para a América. Claro, ela não está
isenta da dominação das árvores e de uma busca das raízes. Vê-se isto
até na literatura, na busca de uma identidade nacional, e mesmo de uma
ascendência ou genealogia européias (Kerouac parte em busca de seus
ancestrais). O que vale é que tudo o que aconteceu de importante, tudo
o que acontece de importante, procede por rizoma americano: beatnik,
underground, subterrâneos, bandos e gangues, empuxos laterais
sucessivos em conexão imediata com um fora. Diferença entre o livro
americano e o livro europeu, inclusive quando o americano se põe na
pista das árvores. Diferenças na concepção do livro. "Folhas de erva".
E, no interior da América, não são sempre as mesmas direções: à leste
se faz a busca arborescente e o retorno ao velho mundo. Mas o oeste
rizomático, com seus índios sem ascendência, seu limite sempre fugidio,
suas fronteiras movediças e deslocadas. Todo um "mapa" americano, no
oeste, onde até as árvores fazem rizoma. A América inverteu as
direções: ela colocou seu oriente no oeste, como se terra tivesse se
tornado redonda precisamente na América; seu oeste é a própria franja
do leste17. (Não é a índia, como acreditava Haudricourt, o
intermediário entre o Ocidente e o Oriente, é a América que faz Pivô e
mecanismo de inversão.) A cantora americana Patti Smith canta a bíblia
do dentista americano: não procure a raiz, siga o canal...
17 Cf. Leslie Fiedler, Le retour du Peau-rouge, Ed. du Seuil.
Encontra-se neste livro uma bela análise da geografia, de seu papel
mitológico e literário na América e da inversão das direções. A leste,
a busca de um código propriamente americano, e também de uma
recodificação com a Europa (Henry James, Eliot, Pound etc); a
sobrecodificação escravagista no sul, com sua própria ruína e a das
plantações na guerra de Secessão (Faulkner, Caldwell); a descodificação
capitalista que vem do norte (Dos Passos, Dreiser); mas o papel do
oeste, como linha de fuga, onde se conjugam a viagem, a alucinação, a
loucura, o índio, a experimentação perceptiva e mental, a mobilidade
das fronteiras, o rizoma (Ken Kesey e sua "máquina produtora de
enevoante"; a geração beatnik etc.). Cada grande autor americano faz
uma cartografia, inclusive por seu estilo; contrariamente ao que
acontece na Europa, ele faz um mapa que se conecta diretamente com os
movimentos sociais reais que atravessam a América. Por exemplo, a
demarcação das direções geográficas em toda a obra de Fitzgerald.
Não existiriam então duas burocracias e até três (e mais ainda)? A
burocracia ocidental: com sua origem agrária, cadastral, as raízes e os
campos, as árvores e seu papel de fronteiras, o grande recenseamento de
Guilherme, o Conquistador, a feudalidade, a política dos reis da
França, assentar o Estado sobre a propriedade, negociar as terras pela
guerra, os processos e os casamentos. Os reis da França escolhem o
lírio, porque é uma planta com raízes profundas prendendo os talos.
Seria a mesma coisa no Oriente? Seguramente, é muito fácil apresentar
um Oriente de rizoma e de imanência; mas o Estado não age nele segundo
um esquema de arborescência correspondente a classes preestabelecidas,
arborificadas e enraizadas: é uma burocracia de canais, por exemplo o
famoso poder hidráulico feito de "propriedade fraca", onde o Estado
engendra classes canalizantes e canalizadas (cf. o que nunca foi
refutado nas teses de Wittfogel). O déspota age aí como rio, e não como
uma fonte que seria ainda um ponto, ponto-árvore ou raiz; ele esposa as
águas bem mais do que senta-se sob a árvore; e a árvore de Buda
torna-se ela mesma rizoma; o rio de Mao Tsé-Tung e a árvore de Luís.
Ainda neste caso a América não teria procedido como intermediária?
Porque ela age ao mesmo tempo por extermínios, liquidações internas
(não somente os índios, mas os fazendeiros etc.) e por empuxos
sucessivos externos de imigrações. O fluxo do capital produz aí um
imenso canal, uma quantificação de poder, com uns "quanta" imediatos
onde cada um goza à sua maneira na passagem do fluxo-dinheiro (de onde
o mito-realidade do pobre que se torna milionário para tornar-se
novamente pobre): tudo se reúne assim, na América, ao mesmo tempo
árvore e canal, raiz e rizoma. Não existe capitalismo universal e, em
si, o capitalismo existe no cruzamento de toda sorte de formações, ele
é sempre por natureza neocapitalismo, ele inventa para o pior sua face
de oriente e sua face de ocidente, além de seu remanejamento dos dois.
Estamos ao mesmo tempo num mau caminho com todas estas distribuições
geográficas. Um impasse, tanto melhor. Se se trata de mostrar que os
rizomas têm também seu próprio despotismo, sua própria hierarquia, mais
duros ainda, muito bem, porque não existe dualismo, não existe dualismo
ontológico aqui e ali, não existe dualismo axiológico do bom e do mau,
nem mistura ou síntese americana. Existem nós de arborescência nos
rizomas, empuxos rizomáticos nas raízes. Bem mais, existem formações
despóticas, de imanência e de canalização, próprias aos rizomas. Há
deformações anárquicas no sistema transcendente das árvores; raízes
aéreas e hastes subterrâneas. O que conta é que a árvore-raiz e o
rizoma-canal não se opõem como dois modelos: um age como modelo e como
decalque transcendentes, mesmo que engendre suas próprias fugas; o
outro age como processo imanente que reverte o modelo e esboça um mapa,
mesmo que constitua suas próprias hierarquias, e inclusive ele suscite
um canal despótico. Não se trata de tal ou qual lugar sobre a terra,
nem de tal momento na história, ainda menos de tal ou qual categoria no
espírito. Trata-se do modelo que não pára de se erigir e de se
entranhar, e do processo que não pára de se alongar, de romper-se e de
retomar. Nem outro nem novo dualismo. Problema de escrita: são
absolutamente necessárias expressões anexatas para designar algo
exatamente. E de modo algum porque seria necessário passar por isto,
nem porque poder-se-ia proceder somente por aproximações: a anexatidão
não é de forma alguma uma aproximação; ela é, ao contrário, a passagem
exata daquilo que se faz. Invocamos um dualismo para recusar um outro.
Servimo-nos de um dualismo de modelos para atingir um processo que se
recusa todo modelo. É necessário cada vez corretores cerebrais que
desfaçam os dualismos que não quisemos fazer e pelos quais passamos.
Chegar à fórmula mágica que buscamos todos: PLURALISMO = MONISMO,
passando por todos os dualismos que constituem o inimigo necessário, o
móvel que não paramos de deslocar.
Resumamos os principais caracteres de um rizoma: diferentemente das
árvores ou de suas raízes, o rizoma conecta um ponto qualquer com outro
ponto qualquer e cada um de seus traços não remete necessariamente a
traços de mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito
diferentes, inclusive estados de não-signos. O rizoma não se deixa
reconduzir nem ao Uno nem ao múltiplo. Ele não é o Uno que se torna
dois, nem mesmo que se tornaria diretamente três, quatro ou cinco etc.
Ele não é um múltiplo que deriva do Uno, nem ao qual o Uno se
acrescentaria (n+1). Ele não é feito de unidades, mas de dimensões, ou
antes de direções movediças. Ele não tem começo nem fim, mas sempre um
meio pelo qual ele cresce e transborda. Ele constitui multiplicidades
lineares a n dimensões, sem sujeito nem objeto, exibíveis num plano de
consistência e do qual o Uno é sempre subtraído (n-1). Uma tal
multiplicidade não varia suas dimensões sem mudar de natureza nela
mesma e se metamorfosear. Oposto a uma estrutura, que se define por um
conjunto de pontos e posições, por correlações binárias entre estes
pontos e relações biunívocas entre estas posições, o rizoma é feito
somente de linhas: linhas de segmentaridade, de estratificação, como
dimensões, mas também linha de fuga ou de desterritorialização como
dimensão máxima segundo a qual, em seguindo-a, a multiplicidade se
metamorfoseia, mudando de natureza. Não se deve confundir tais linhas
ou lineamentos com linhagens de tipo arborescente, que são somente
ligações localizáveis entre pontos e posições. Oposto à árvore, o
rizoma não é objeto de reprodução: nem reprodução externa como
árvore-imagem, nem reprodução interna como a estrutura-árvore. O rizoma
é uma antigenealogia. É uma memória curta ou uma antimemória. O rizoma
procede por variação, expansão, conquista, captura, picada. Oposto ao
grafismo, ao desenho ou à fotografia, oposto aos decalques, o rizoma se
refere a um mapa que deve ser produzido, construído, sempre
desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas
entradas e saídas, com suas linhas de fuga. São os decalques que é
preciso referir aos mapas e não o inverso. Contra os sistemas centrados
(e mesmo policentrados), de comunicação hierárquica e ligações
preestabelecidas, o rizoma é um sistema a-centrado não hierárquico e
não significante, sem General, sem memória organizadora ou autômato
central, unicamente definido por uma circulação de estados. O que está
em questão no rizoma é uma relação com a sexualidade, mas também com o
animal, com o vegetal, com o mundo, com a política, com o livro, com as
coisas da natureza e do artifício, relação totalmente diferente da
relação arborescente: todo tipo de "devires". Um platô está sempre no
meio, nem início nem fim. Um rizoma é feito de platôs. Gregory Bateson
serve-se da palavra "platô" para designar algo muito especial: uma
região contínua de intensidades, vibrando sobre ela mesma, e que se
desenvolve evitando toda orientação sobre um ponto culminante ou em
direção a uma finalidade exterior. Bateson cita como exemplo a cultura
balinense, onde jogos sexuais mãe-filho, ou bem que-relas entre homens,
passam por essa estranha estabilização intensiva. "Um tipo de platô
contínuo de intensidade substitui o orgasmo", a guerra ou um ponto
culminante. É um traço deplorável do espírito ocidental referir as
expressões e as ações a fins exteriores ou transcendentes em lugar de
considerá-los num plano de imanência segundo seu valor em si18.
18
Bateson, Vers une écologie de 1'esprit, t. 1, Ed. du Seuil, pp.
125-126. Observa-se-á que a palavra "platô" é classicamente empregada
no estudo dos bulbos, tubérculos e rizomas: cf. Dictionnaire de
botanique de Baillon, artigo "Bulbo".
Por exemplo, uma vez que um livro é feito de capítulos, ele possui seus
pontos culminantes, seus pontos de conclusão. Contrariamente, o que
acontece a um livro feito de "platôs" que se comunicam uns com os
outros através de microfendas, como num cérebro? Chamamos "platô" toda
multiplicidade conectável com outras hastes subterrâneas superficiais
de maneira a formar e estender um rizoma. Escrevemos este livro como um
rizoma. Compusemo-lo com platôs. Demos a ele uma forma circular, mas
isto foi feito para rir. Cada manhã levantávamos e cada um de nós se
perguntava que platôs ele ia pegar, escrevendo cinco linhas aqui, dez
linhas alhures. Tivemos experiências alucinatórias, vimos linhas, como
fileiras de formiguinhas, abandonar um platô para ir a um outro.
Fizemos círculos de convergência. Cada platô pode ser lido em qualquer
posição e posto em relação com qualquer outro. Para o múltiplo, é
necessário um método que o faça efetivamente; nenhuma astúcia
tipográfica, nenhuma habilidade lexical, mistura ou criação de
palavras, nenhuma audácia sintática podem substituí-lo. Estas, de fato,
mais freqüentemente, são apenas procedimentos miméticos destinados a
disseminar ou deslocar uma unidade mantida numa outra dimensão para um
livro-imagem. Tecnonarcisismo. As criações tipográficas, lexicais ou
sintáticas são necessárias somente quando deixam de pertencer à forma
de expressão de uma unidade escondida para se tornarem uma das
dimensões da multiplicidade considerada; conhecemos poucas experiências
bem-sucedidas neste gênero19. No que nos diz respeito não soubemos
fazê-lo. Empregamos somente palavras que, por sua vez, funcionavam para
nós como platôs. RIZOMÁTICA = ESQUIZOANÁLISE = ESTRATO ANÁLISE =
PRAGMÁTICA = MICROPOLÍTICA. Estas palavras são conceitos, mas os
conceitos são linhas, quer dizer, sistemas de números ligados a esta ou
àquela dimensão das multiplicidades (estratos, cadeias moleculares,
linhas de fuga ou de ruptura, círculos de convergência, etc). De forma
alguma pretendemos ao título de ciência. Não reconhecemos nem
cientificidade nem ideologia, somente agenciamentos. O que existe são
os agenciamentos maquínicos de desejo assim como os agenciamentos
coletivos de enunciação. Sem significância e sem subjetivação: escrever
a n (toda enunciação individuada permanece prisioneira das
significações dominantes, todo desejo significante remete a sujeitos
dominados). Um agenciamento em sua multiplicidade trabalha
forçosamente, ao mesmo tempo, sobre fluxos semióticos, fluxos materiais
e fluxos sociais (independentemente da retomada que pode ser feita dele
num corpus teórico ou científico). Não se tem mais uma tripartição
entre um campo de realidade, o mundo, um campo de representação, o
livro, e um campo de subjetividade, o autor. Mas um agenciamento põe em
conexão certas multiplicidades tomadas em cada uma destas ordens, de
tal maneira que um livro não tem sua continuação no livro seguinte, nem
seu objeto no mundo nem seu sujeito em um ou em vários autores.
Resumindo, parece-nos que a escrita nunca se fará suficientemente em
nome de um fora. O fora não tem imagem, nem significação, nem
subjetividade. O livro, agenciamento com o fora contra o livro-imagem
do mundo. Um livro rizoma, e não mais dicotômico, pivotante ou
fasciculado. Nunca fazer raiz, nem plantar, se bem que seja difícil não
recair nos velhos procedimentos. "As coisas que me vêm ao espírito se
apresentam não por sua raiz, mas por um ponto qualquer situado em seu
meio. Tentem então retê-las, tentem então reter um pedaço de erva que
começa a crescer somente no meio da haste e manter-se ao lado"20. Por
que é tão difícil? É desde logo uma questão de semiótica perceptiva.
Não é fácil perceber as coisas pelo meio, e não de cima para baixo, da
esquerda para a direita ou inversamente: tentem e verão que tudo muda.
Não é fácil ver a erva nas coisas e nas palavras (Nietzsche dizia da
mesma maneira que um aforismo devia ser "ruminado", e jamais um platô é
separável das vacas que o povoam e que são também as nuvens do céu).
19
É o caso de Joëlle de la Casinière, Absolument nécessaire, Ed. de
Minuit, que é um livro verdadeiramente nômade. Na mesma direção, cf. as
pesquisas do "Montfaucon Research Center".
20 Kafka, Journal, Grasset, p. 4.
Escreve-se a história, mas ela sempre foi escrita do ponto de vista dos
sedentários, e em nome de um aparelho unitário de Estado, pelo menos
possível, inclusive quando se falava sobre nômades. O que falta é uma
Nomadologia, o contrário de uma história. No entanto, aí também
encontram-se raros e grandes sucessos, por exemplo a propósito de
cruzadas de crianças: o livro de Mareei Schwob, que multiplica os
relatos como outros tantos de platôs de dimensões variáveis. O livro de
Andrzejewski, Les Portes du Paradis, feito de uma única frase
ininterrupta, fluxo de crianças, fluxo de caminhada com pisoteamento,
estiramento, precipitação, fluxo semiótico de todas as confissões de
crianças que vêm declarar-se ao velho monge no início do cortejo, fluxo
de desejo e de sexualidade, cada um tendo partido por amor, e mais ou
menos diretamente conduzido pelo negro desejo póstumo e pederástico do
conde de Vendôme, com círculos de convergência — o importante não é que
os fluxos produzam "Uno ou múltiplo", não estamos mais nessa: há um
agenciamento coletivo de enunciação, um agenciamento maquínico de
desejo, um no outro, e ligados num prodigioso fora que faz
multiplicidade de toda maneira. E depois, mais recentemente, o livro de
Armand Farrachi sobre a IV cruzada, La dislocation, em que as frases
afastam-se e se dispersam ou bem se empurram e coexistem, e as letras,
a tipografia se põe a dançar à medida que a cruzada delira21.
21
Marcel Schowob, La croisade des enfants, 1986; Jersy Andrzejewski, Les
portes du paradis, 1959, Gallimard; Armand Farrachi, La dislocation,
1974, Stock. É a propósito do livro de Schwob que Paul Alphandéry dizia
que a literatura, em alguns casos, podia renovar a história e lhe impor
"verdadeiras direções de pesquisas" (La chrétienté et 1'idée de
croisade, t II, Albin Michel, p. 116).
Eis modelos de escrita nômade e rizomática. A escrita esposa uma
máquina de guerra e linhas de fuga, abandona os estratos, as
segmentaridades, a sedentaridade, o aparelho de Estado. Mas por que é
ainda necessário um modelo? O livro não seria ainda uma "imagem" das
cruzadas? Não existiria ainda uma unidade salvaguardada, como unidade
pivotante no caso de Schwob, como unidade abortada no caso de Farrachi,
como unidade do Conde mortuária no caso mais belo das Portes du
Paradis? Seria necessário um nomadismo mais profundo que aquele das
cruzadas, o dos verdadeiros nômades ou ainda o nomadismo daqueles que
nem se mexem, e que não imitam nada? Eles agenciam somente. Como
encontrará o livro um fora suficiente com a qual ele possa agenciar no
heterogêneo,em vez de reproduzir um mundo? Cultural, o livro é
forçosamente um decalque: de antemão, decalque dele mesmo, decalque do
livro precedente do mesmo autor, decalque de outros livros sejam quais
forem as diferenças, decalque interminável de conceitos e de palavras
bem situados, reprodução do mundo presente, passado ou por vir. Mas o
livro anticultural pode ainda ser atravessado por uma cultura demasiado
pesada: dela fará, entretanto, um uso ativo de esquecimento e não de
memória, de subdesenvolvimento e não de progresso a ser desenvolvido,
de nomadismo e não de sedentarismo, de mapa e não de decalque.
RIZOMÁTICA = POP'ANÁLISE, mesmo que o povo tenha outra coisa a fazer do
que lê-lo, mesmo que os blocos de cultura universitária ou de
pseudocientificidade permaneçam demasiado penosos ou enfadonhos. Porque
a ciência seria completamente louca se a deixassem agir; vejam, por
exemplo, a matemática: ela não é uma ciência mas uma prodigiosa gíria,
e nomádica. Ainda e sobretudo no domínio teórico, qualquer esboço
precário e pragmático é melhor do que o decalque de conceitos com seus
cortes e seus progressos que nada mudam. A imperceptível ruptura em vez
do corte significante. Os nômades inventaram uma máquina de guerra
contra o aparelho de Estado. Nunca a história compreendeu o nomadismo,
nunca o livro compreendeu o fora. Ao longo de uma grande história, o
Estado foi o modelo do livro e do pensamento: o logos, o filósofo-rei,
a transcendência da Idéia, a interioridade do conceito, a república dos
espíritos, o tribunal da razão, os funcionários do pensamento, o homem
legislador e sujeito. É pretensão do Estado ser imagem interiorizada de
uma ordem do mundo e enraizar o homem. Mas a relação de uma máquina de
guerra com o fora não é um outro "modelo", é um agenciamento que torna
o próprio pensamento nômade, que torna o livro uma peça para todas as
máquinas móveis, uma haste para um rizoma (Kleist e Kafka contra
Goethe).
Escrever a n, n-1, escrever por intermédio de slogans: faça rizoma e
não raiz, nunca plante! Não semeie, pique! Não seja nem uno nem
múltiplo, seja multiplicidades! Faça a linha e nunca o ponto! A
velocidade transforma o ponto em linha22! Seja rápido, mesmo parado!
Linha de chance, jogo de cintura, linha de fuga. Nunca suscite um
General em você! Nunca idéias justas, justo uma idéia (Godard). Tenha
idéias curtas. Faça mapas, nunca fotos nem desenhos. Seja a Pantera
cor-de-rosa e que vossos amores sejam como a vespa e a orquídea, o gato
e o babuíno. Diz-se do velho homem rio:
22
Cf. Paul Virilio, "Véhiculaire", in Nômades et vagabonds, 10-18 p. 43:
Sobre o surgimento da linearidade e perturbação da percepção pela
velocidade.
He don't plant tatos
Don’t plant cotton
Them that plants them is soon forgotten
But old man river he just keeps rollin along.
Um rizoma não começa nem conclui, ele se encontra sempre no meio, entre
as coisas, inter-ser, intermezzo. A árvore é filiação, mas o rizoma é
aliança, unicamente aliança. A árvore impõe o verbo "ser", mas o rizoma
tem como tecido a conjunção "e... e... e..." Há nesta conjunção força
suficiente para sacudir e desenraizar o verbo ser. Para onde vai você?
De onde você vem? Aonde quer chegar? São questões inúteis. Fazer tabula
rasa, partir ou repartir de zero, buscar um começo, ou um fundamento,
implicam uma falsa concepção da viagem e do movimento (metódico,
pedagógico, iniciático, simbólico...). Kleist, Lenz ou Büchner têm
outra maneira de viajar e também de se mover, partir do meio, pelo
meio, entrar e sair, não começar nem terminar23. Mas ainda, é a
literatura americana, e já inglesa, que manifestaram este sentido
rizomático, souberam mover-se entre as coisas, instaurar uma lógica do
E, reverter a ontologia, destituir o fundamento, anular fim e começo.
Elas souberam fazer uma pragmática. É que o meio não é uma média; ao
contrário, é o lugar onde as coisas adquirem velocidade. Entre as
coisas não designa uma correlação localizável que vai de uma para outra
e reciprocamente, mas uma direção perpendicular, um movimento
transversal que as carrega uma e outra, riacho sem início nem fim, que
rói suas duas margens e adquire velocidade no meio.
23 Cf. J.C. Bailly, La legende dispersée, 10-18: a descrição do movimento no romantismo alemão, pp. 18
sq.
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Mil Platôs Vol. 1, Cap. 1 - Gilles Deleuze & Félix Guattari
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